20050403

Suburbanidades

Gordos, magros,
muito gordos, muito cheios,
muito altos, muito pequenos,
muito Tias ou mulher-a-dias,
muita madeixa, muito rapada ou muito nada,
muitos sacos, muitas compras,
muitos luxos, muitos lixos,
muitos livros, jornais e outros que tais...
Muito futebol, e o campeão, ou talvez não, e a agressão e não expulsão,
e a maria e mais a tia e a sobrinha da minha vizinha..

E a estação, e as estações,
muitos invernos, muitos verões,
e mais o frio,
e um lugar vazio, que ninguém quer,
porque está "quente" e tomara a gente ter um lugar,
para se sentar, naquele comboio à hora de ponta.

E o revisor e sôdoutor
E a menina meio traquina
E o dorminhoco e o que fala pouco
E a "galinha" logo de manhãzinha

E os jovens que vão passear
No mesmo comboio que vou trabalhar
Muitos outros o apanharão
Quando eu saír na minha estação

Olhos nos olhos
Mão na mão
Um beijo morno a saír no vagão

E uma desconhecida voz familiar
Que não pára de avisar
A estação que vem a seguir
Para saber onde saír

Está vazio.
Mais ninguém.
Até à última chegar,
Onde vou saír,
Vou aproveitar...
E dormir...!


A possibilidade de, num espaço contíguo, se conseguir juntar pessoas de todas as cores e amores, credos e religiões, nacionalidades e profissões, convicções políticas, extractos sociais, em que todos partilhamos algo em comum...
Esta é a verdadeira suburbanidade

20050330

Revelações inusitadas

Entra acelerada.
Despenteada.
Esbaforida.
Corada.

Vê-se que ainda correu bastante para apanhar o comboio.
Vinha cheio.
Tinham reduzido o número de carruagens por ser altura de férias.
Muita gente em pé, em constante luta pelo euqilíbrio.
Calor humano. Calor do Verão.

Afogueada, encosta-se à porta do WC.
Porta aberta, quase que cai redonda no chão.
Envergonhada, recolhe-se a um canto da carruagem.
Ainda não refeita da corrida, a respiração teima em acalmar e retomar à normalidade.

Sua em bica.
Gelada no Verão.
Tremores percorrem-lhe o corpo.
Olhar vidrado, procurando incessantemente um rosto conhecido.
Ninguém.

Ninguém.

Sente-se agoniada.
Perde a força nas pernas trémulass e eis que num ápice alguém se levanta do seu lugar e a ampara.

Desfalece-lhe nos braços.

Recupera nuns breves longos segundos.

Um olhar ternos e verde acalma-a.
Cede-lhe o lugar.
Rapidamente adormece.
Acorda na sua estação e é levada a comer qualquer coisa.
Contra a sua vontade.

Aquela mulher de olhos verdes maduros bem podia ser sua Mãe.

Anorexia.
E só hoje o soube...

20050323

A caminho de lugar nenhum

Pega no livro sofregamente.
Procura o marcador.
Abre o livro e lança os olhos prontos a devorar os caracteres.

Lê. Lê. Lê.
Rói uma unha
Descruza as pernas.
Ajeita o cabelo.
E continua a ler.

Tem uma ou duas borbulhas na cara.
Nem um vestígio de maquilhagem.
Rosto de menina.
Olhar fugaz.
Cores velhas. Cinzas e castanhos.

Lê. Lê. Lê.
Lança um olhar subreptício ao reflexo da janela do comboi.
Coloca a madeixa de franja no devido lugar.
Contrariada madeixa alaranjada.

Morde o lábio.
Olha para mim.

Pausa a sua leitura.
Rói mais uma unha meticulosamente ao acaso.

Tosse. Seca. Nervosa.

Tenta ler e reler e roer e esconder.

Mas a sua alma acotovela-a e isso nota-se no seu gesto.

Hoje vai a um velório..
O primeiro desde o da sua Mãe...

20050322

Cacofonia Suburbana

Um misto de vozes enche-me o ouvido.

Amálgama de vozes sem rosto, corpos cansados, olhos tristes e cabisbaixos.
Fim de mais um dia de labuta.
Misturam-se com o som da gravação que informa a "próxima paragem"...

A luz emerge ainda no azul do céu, enquanto centenas de almas voltam a casa.

Chuva em Março.

E o comboio desliza suavemente, ignorando o peso dos dois andares que tem.

Este pára em quase todas.

Este comboio que lambe o carril numa fugacidade extrema, deixa-me adivinhar que chegarei ainda de dia à minha estação...

A última...

Peixeirices

Em pré-adormecimento, ouço esta exclamação vinda do nada....

"Gosto muito de fataça.
E de chicharro.
Mas não chove, a fataça só sabe a lodo!
Ah....e já nem se vê mulheres na praça a vender a bela da fataça..."

Acho que nunca comi fataça.
Nem tampouco sei se virei a comer...
A não ser que chova...

20050318

Revistices

Senta-se a meu lado uma mulher.
Mãos sapudas. Permanente por renovar. Madeixas antigas.
Exala cheiro a comida.
Borrego assado no forno.
Peixe frito.
Molotov.

Olha de soslaio para as mãos da senhora do lado, uma "dondoca", de manicure à francesa, à la mode.
Olha para as suas mãos. Sapudas. Baixa o olhar.
Mãos carcomidas.
Pele gasta.
Cortezinhos no dedo.

Abre a mala. Tira a sua revista das telenovelas e entra no seu "mundo".

A dondoca olha de revés para a revista da cozinheira.
Fecha a sua revista da "high-society".
Troca os olhos para tentar ler "aquele" artigo da vizinha.

A mulher das mãos sapudas encosta-se à janela do comboio e adormece.
A dondoca quase ganha um torcicolo ao deliciar-se com a "espionagem".

E olha para mim.

E eu viro a cara.
Acabo por também adormecer ao ritmo de cada paragem...

Em marcha lenta...

...como lento correr dos dias, inicio aqui relatos e vivências do meu dia-a-dia nos carris...
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